«No princípio criou Deus os céus e a terra.
E a terra era sem forma e vazia.
E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que era boa a luz.
E chamou Deus à porção seca Terra; e viu Deus que era bom.» Génesis in Bíblia
Tenho os olhos cheios desta terra amarela. Fati põe a música aos berros e dança ao volante a uma velocidade impensável em trilhos de cabras, dromedários e berberes. Dou gargalhada e danço também. Mas é quase impossível não bater com a cabeça no tejadilho do 4x4 neste caminho de pedras amarelas, cortado aqui e ali por ervas secas e rapadas de que não sei o nome. Todo o dia o amarelo da paisagem inundou-me os olhos – uma caverna onde morre a amada de um paciente inglês, caminhos de estrelas, casas amarelas de trogloditas com uma «plantação» de uma batata abrigada do sol amarelo por uma couve. Ali o verde teima em querer vingar nesta terra de areia. Trago na alma um bocado de pão molhado em azeite e um chá que queima, foram verbo em tempo de partilha.
A velocidade inebria-me e estonteia-me esta música que tem ritmo de lonjuras e a languidez do amarelo de um luxo decadente. De repente, Fati faz pião, eu grito. Pára e salta cá para fora. E o seu corpo grande e torrado pelo sol serpenteia em harmonia com aquela música. Não penso. Salto também e danço seguindo-lhe o ondear do corpo. Rio-me feliz nos olhos dele. Esqueço o amarelo por instantes e o ouro daquele sol invade-me numa carícia ardente. E é bom.
«E a terra produziu erva, erva dando semente conforme a sua espécie, e a árvore frutífera, cuja semente está nela conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.» Génesis in Bíblia
Caio ofegante no banco de trás. Hamid, o guia, também se ri e diz que esta terra amarela produz estes sorrisos em gente que procura o verde ansiado da vida. Não chove há quatro anos e as pedras esfarelam-se, às vezes, debaixo das rodas. E a terra surge redonda no horizonte e sempre amarela! Já não atento na música. Aqui e ali, na paisagem sem fim, recortam-se cabras e figuras negras ao lado de tendas rentes ao chão – abrigarão os seres viventes na noite que chegará vermelha em assobios de vento, trazendo dentro de si o frio tórrido da noite. Suspiro, cansada do amarelo e fecho os olhos. Relembro emoções, sinto os sorrisos de caras precocemente envelhecidas pelo sol.
Fati quase grita no aviso da chegada. Abro os olhos e fico perdida no verde. Por uma nesga vejo o céu, eternamente azul, emoldurado por esse verde luxuriante da vegetação. Pasmo perante palmares numa paisagem de sonho e o verde é gritante quando me fere os olhos habituados ao amarelo. A areia que piso é tão fina que se entranha na pele, a água é quente – sai do solo a cerca de quarenta graus. Não espero e, rapidamente, junto-me a outros nesta água onde o verde das palmeiras e o azul do céu se projectam numa simbiose única. O paraíso deve ser assim, é prazer nos olhos e na carne.
E a vida explode num oásis. E é bom.
«E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.
E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom
E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só.
E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher. E disse: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada (…) e serão ambos uma só carne.» Génesis in Bíblia
Preparo-me para o jantar. A roupa azul condiz com o ambiente. Na testa uma espécie de tiara também azul. Fati olha-me com espanto e faz uma vénia cómica. Olho este pôr de sol único e sempre vermelho. Os deuses marcaram a fogo esta terra e esta gente.
Céus! É tão belo! Alto, adivinha-se-lhe o corpo elástico e musculado sob as vestes negras. Na cabeça o litham também negro. Os olhos de um azul intenso brilham na pele quase negra do sol. Ali Babá e os quarenta ladrões! São eles que nos servirão o jantar. Sinto-me perdida no meu filme de cavaleiros de desertos encantados. A gruta que se abre é esta música e estes archotes que iluminam um mundo novo.
E o meu Ali Babá sorri-me. E a magia perde-se em dentes negros de alimentos picantes que ajudam a suportar temperaturas inimagináveis para mim. Esqueço rapidamente esse sorriso e concentro-me nos seus olhos. Têm a sensualidade da areia quente no corpo.
Na noite, sento-me com ele, lado a lado, olhando estrelas que nunca vi. Não falamos – mesmo a doçura da língua francesa seria empecilho no partilhar de um céu assim. Ele apenas me sorri com os olhos quando me fita. E o azul brilha intenso na noite. Fixo um horizonte que ainda não entendi. Deixo-me envolver pela noite de um homem do deserto. A meus pés, a extensão da areia é tão infinita como este céu que me inunda.
«E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam.» Génesis in Bíblia
Sou mulher. O homem a meu lado tem a vastidão do deserto de areia branca e do negro das suas vestes. Dá-me a mão. Sinto o seu pulsar. E, lentamente, a minha respiração repousa na dele. Deixo-me existir assim, sentir o que nunca senti. Não quero perturbar este silêncio de vida na noite e na paz das estrelas. Quem és tu? Que vida a tua? Que língua me falas? Que canção trazes tu neste teu seduzir-me? Que noites? Que céus? Que estrelas me prometes? Desnudas-te! Desnudo-me! E na noite do oásis, a alma grita a vida que corre frenética na sua evidência.
E é bom.
Estendes-me a outra mão, nela uma rosa do deserto: é areia e sal. É vida!
Voltarei.
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